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O CALIFA DA RUA SABAO - CENA II

CENA II

CUSTÓDIO e NATIVIDADE

Duetino

NATIVIDADE --Psit! Psit! (3 vezes.)
CUSTÓDIO -- O patrão! (3 vezes.)
NATIVIDADE -- Psit! Psit!
Cala a boca,
Pois é pouca
Toda a tua discrição!
CUSTÓDIO -- Temos mistério! (Bis.)
NATIVIDADE -- Mas muito sério!
Ninguém deve
Nem de leve
O que vim fazer

Saber!
Psit! Psit!
Mas muito sério.
JUNTOS -- Ninguém deve
Nem de leve
o que vim fazer
veio
Saber,
NATIVIDADE -- Eu tomei três tílburis,
Dobrei mil esquinas,
Abaixei cortinas
E afinal cá estou;
Ai, meu bom Custódio,

Serás surdo e mudo,
Senão lá vai tudo
Quanto Marta fiou!

CUSTÓDIO -- Tanto mistério, patrão, patrão,
Trata-se acaso de um crime?... de um crime?...
NATIVIDADE -- Adivinhaste: de um crime!
CUSTÓDIO (Querendo desmaiar.) -- Segura-me, eu caio
De ventas no chão!


NATIVIDADE --Cala, cala,
Pois é pouca
Toda a tua discrição!
JUNTOS -- Ninguém deve
Nem de leve
Saber desta reunião,
Ninguém deve
Nem de leve
Saber desta reunião! reunião! reunião!
CUSTÓDIO (Amedrontado.) -- Um crime, patrão!
NATIVIDADE -- Silêncio! Um crime, é verdade...
CUSTÓDIO (Correndo.) -- Ó da guarda!
NATIVIDADE (Agarrando-o pelo fato.) -- Vem cá. Não te
precipites! Um crime que não [é] previsto pelo Código. Trata pura e
simplesmente de trair a minha fé conjugal.
CUSTÓDIO (Repreensivo.) -- Oh! patrão!
NATIVIDADE -- Que queres? Fraquezas da humanidade.
CUSTÓDIO -- E a patroa, a Senhora Dona Simplícia?

NATIVIDADE -- Custódio, se és meu amigo, não me fales de
Simplícia. Não imaginas o que é a minha vida privada!
CUSTÓDIO -- Deveras?
NATIVIDADE -- Já chegamos ao ponto de não nos falarmos senão
no dia primeiro, que é quando caio com os cobres para a despesa da casa...
e ainda assim, sempre acabamos brigando! Resolvi, portanto, fazer outra
família à parte.
CUSTÓDIO -- Patrão! Patrão!
NATIVIDADE -- Foi uma idéia que me ocorreu há dois meses, em
Constantinopla. Disse comigo: -- Natividade, eis-te na pátria das huris, na
terra das formosas escravas.
CUSTÓDIO -- Hein? Comprou uma mulher?
NATIVIDADE -- Eu nunca fui abolicionista, e há muito tempo
desejava realizar esta transação oriental! Vesti-me de turco e dirigi-me...
CUSTÓDIO -- A uma casa de comissão.
NATIVIDADE -- A um bazar, para efetuar a minha compra.
Tomou-me a passagem no caminho um respeitável muçulmano, que me
disse em muito bom francês: -- Monsieur, j'ai une occasion magnifique,
une circassienne1 superbe2! Levou-me à sua tenda, bateu três vezes numa
portinha, e a formosa Zetublé apareceu, envolvida em gazes!
CUSTÓDIO -- Transparentes?
NATIVIDADE -- Maganão! Não regateei... O turco pediu -me cinco
mil francos: dei-lhe dois mil e quinhentos.
CUSTÓDIO -- Barata feira!
NATIVIDADE -- Dois mil e quinhentos francos, entenda-se.
CUSTÓDIO -- Ah!
NATIVIDADE -- E mais três quilos de tabaco de Goiás... Nesse
mesmo dia, parti para Marselha com a minha esplêndida cativa.
(Mostrando a porta do primeiro plano à direita.) Ela está ali... naquela
alcova... envolvida nos seus gases, quero dizer, nas suas gazes.
CUSTÓDIO -- Pode-se entrar?
NATIVIDADE -- Maganão! E aqui tens o meu serralho.
CUSTÓDIO -- Na Rua do General Câmara!
NATIVIDADE -- Antiga do Sabão, é verdade.
CUSTÓDIO -- Mas permita uma observação, Senhor Natividade, no
Brasil já não há escravas.
NATIVIDADE -- E que tem isso?
CUSTÓDIO -- Ela é livre, e se quiser passar o pé...
NATIVIDADE -- Então eu caio de cavalo magro? Primeiro que
tudo, ela não sabe que está no Rio de Janeiro!
1Circassienne -- Natural ou habitante da Circássia (Ásia).
2Trad -- Senhor, tenho uma oportunidade magnífica, uma circassiana esplêndida.

CUSTÓDIO -- Homessa!
NATIVIDADE -- Quando chegamos a Marselha, ela achava-se
bastante incomodada pelo enjôo do mar.
CUSTÓDIO -- Pobre huri!
NATIVIDADE -- Logo no dia seguinte, estávamos a bordo do navio
que nos trouxe para cá... Desembarcamos à noite, meti-a num carro
fechado, trouxe-a para este quarto andar, fechei a porta, abri aquela janela,
e disse-lhe, apontando para o zimbório da Candelária: -- Estamos em
Túnis! Ali está a grande mesquita...
CUSTÓDIO -- Em Túnis! E ela engoliu a pílula?
NATIVIDADE -- Ora essa. Se eu lhe dissesse Chapéu d'Uvas,
engoli-la-ia da mesma forma. As circassianas não sabem geografia.
CUSTÓDIO (À parte.) -- Este patrão é de força!(Alto.) Mas o que
não vejo, é para quê me mandou chamar! Em que lhe poderei ser útil?
NATIVIDADE -- Custódio, tu és um bom velhote. Presta-me toda a
atenção. (Vão sentar-se no divã.)
CUSTÓDIO -- Sou todo ouvidos.
NATIVIDADE -- Tu, como guarda-livros, és bananeira que já deu
cacho.
CUSTÓDIO -- Mas...
NATIVIDADE -- Pus-te no andar da rua... para dar-te outro
emprego.
CUSTÓDIO -- Deveras?
NATIVIDADE -- Uma sinecura, não te digo mais nada. Casa,
comida, cem bagarotes por mês, para não fazer nada.
CUSTÓDIO -- Oh! Senhor Natividade! Não sei como lhe
agradeça... Mas, que vem a ser o tal emprego?
NATIVIDADE -- Meu velho, na Europa é costume fazer uns
bonecos de palha, que se colocam nas cerejeiras...
CUSTÓDIO -- Sim, senhor, na minha terra chamam-seespantalhos.
NATIVIDADE -- É isso mesmo. Discretos ao último ponto,esses
manequins são incapazes de tocar nas cerejas, mas espantamospassarinhos
que tentam aproximar-se delas.
CUSTÓDIO -- Mas não atino...
NATIVIDADE -- Vais atinar... Nos serralhos há uma classe de
funcionários... espantalhos, incumbidos de vigiar as cerejas do sultão.
CUSTÓDIO (Levantado-se vivamente.) -- Alto lá, nãosoudepalha!
NATIVIDADE -- És o homem que me convém. Tomarás conta do
teu novo emprego hoje mesmo. (Consultando o relógio.)São dez horas...
Começas a vencer o ordenado.
CUSTÓDIO (À parte.) -- Ora esta, que bonito emprego para um
cidadão que ainda gosta de cerejas!

NATIVIDADE (Abrindo a primeira porta da esquerda.) --Éesteo
teu quarto... Ali encontrarás uma vestimenta de turco, um alfanje e umas
barbas.
CUSTÓDIO -- É preciso que eu me disfarce em turco?
NATIVIDADE -- Pois se estamos em T únis!
CUSTÓDIO -- Mas se eu não sei uma palavra da língua turca.
NATIVIDADE -- Nem eu.
CUSTÓDIO -- Nesse caso a Zetublé percebe logo que...
NATIVIDADE -- Não percebe tal, ela só sabe o idioma da
Circássia. Podes falar-lhe todas as línguas! Ah, é verdade, não te esqueças
de que eu me chamo Ben-Cid-Natividade.
CUSTÓDIO -- Tem graça, tem... mas eu também precisava de um
nome oriental.
NATIVIDADE -- Tu chamas-te Omã.
CUSTÓDIO -- Custódio Omã! Não soa mal. Custódio Omã.
NATIVIDADE -- Vai, vai mudar de fato. Preciso apresentar-te a
Zetublé.
CUSTÓDIO (À porta da esquerda.) -- Hein! O meu quarto está
cheio de sacos!!
NATIVIDADE -- Já disse ao senhorio que mandasse tirar esses
sacos de rolhas, aqui deixadas por um sujeito que aqui morou.
CUSTÓDIO -- Daqui a pouco levo-as para o corredor. (Natividade
toma-o pela mão, trá-lo ao proscênio e cantam ambos misteriosamente o
último motivo do dueto. Cantam.)
NATIVIDADE -- Cala, cala,
JUNTOS -- Cala a boca, (Bis.)
Pois é pouca
Toda a tua discrição!
Toda a minha discrição!
NATIVIDADE -- Psit! Psit!
ninguém deve
JUNTOS -- Ninguém deve
Nem de leve
Saber desta reunião, desta reunião, desta reunião.
(Custódio sai pela esquerda.)